segunda-feira, 19 de julho de 2010

Minha primeira namorada não tinha rosto.

Eu tinha 6 anos, faz muito tempo. Minha mãe tinha que ir a um médico qualquer, então eu tive que ir com ela no consultório. Quando a secretária mandou minha mãe entrar para a consulta, eu fiquei sentado na sala de espera e me deram uma revista pra distrair. Eu já disse que tinha 6 anos, ainda não sabia ler. Era uma Manchete ou um O Cruzeiro, provavelmente uma Manchete, porque puxava o saco do Juscelino. Também já disse que faz muito tempo. Sem poder ler as palavras, comecei a folhear a revista e ver as fotos.

Foi aí que aconteceu. Uma foto em preto e branco mostrava uma estrada muito longa e reta, sem asfalto, no meio do nada, por onde passava um caminhão levantando poeira em direção ao infinito. Em primeiro plano, de costas para a lente, contemplando a passagem do caminhão, estava de pé uma menina da minha idade, de vestido muito curto e esfarrapado, de cabelos queimados pelo sol e desgrenhados pelo vento, segurando a mão de um garotinho de bumbum de fora, só de camiseta suja e sem manga, ambos descalços.

Fiquei paralisado a olhar aquela menina e seu irmãozinho, muito pobres, na beira de uma estrada poeirenta que parecia não levar a lugar nenhum. Nenhuma casa, nenhuma árvore, nenhum adulto na foto. O que faziam duas crianças sozinhas num local como aquele? Estavam abandonadas? Por quê suas roupas eram tão poucas e não tinham sapatos nem sandálias? Para onde estava indo aquele caminhão, se a estrada terminava num bico sob um céu imenso e sem nuvens lá no fim da foto? Por quê o caminhão não tirou as crianças dali? Ou será que foi o caminhão que deixou as crianças ali?

Senti meu coração apertado, fiquei com vontade de chorar. Olhei de rabo de olho para as outras pessoas na sala de espera do consultório, senhoras gordas e velhas de bochechas avermelhadas e roupas coloridas cada qual concentrada em sua revista, uma secretária de branco e óculos dourados muito sérios anotando palavras num caderno com um lápis preto. Baixei os olhos outra vez para a foto da menina. Sim, para mim aquela foto não era mais de uma estrada e um caminhão, era de uma menina da minha idade que não tinha vestidos bordados nem meias brancas com sapato de verniz como a minha irmã. Não tinha uma boneca nem uma amiga para brincar, só um irmão sujo e sem calças, de quem tinha que cuidar. E estava de costas.

Eu queria ver seu rosto, saber se tinha olhos grandes ou pequenos, claros ou escuros. Em seguida não queria mais ver seus olhos, achei que ela devia estar triste e chorando. E depois que o caminhão sumisse no infinito daquela estrada, para o quê ela iria olhar? O que iria comer, onde iria dormir? Quem faria a mamadeira do irmãozinho nu? E por quê minha mãe não saía nunca por aquela porta de madeira escura para me tirar de uma vez daquele lugar sombrio e silencioso? Mas no minuto seguinte eu não queria mais que minha mãe me tirasse dali porque a revista ficaria no consultório e eu nunca mais veria a minha menina da foto. Pois, é claro, aquela menina, agora, era minha e eu não poderia mais viver sem ela.

A porta de madeira escura se abriu e minha mãe saiu por ela. Um desespero enorme me ocupou e eu agarrei a revista contra o peito, o olhar assustado. Devia estar pálido, porque minha mãe logo me fez um carinho e disse “pronto, não demorei nada, não foi? Podemos ir para casa.” Mantive-me decididamente agarrado à revista enquanto levantava correndo para fugir dali. A secretária, o médico, o consultório, as velhas gordas e coloridas que se danassem, eu ia roubar a revista, virar ladrão, mas só o que me importava era salvar a minha menina daquilo tudo, ia levá-la pra minha casa e livrá-la daquela foto terrível. E nós dois iríamos ser felizes para sempre.

- Eu quero levar esta revista!

Todas as pessoas do mundo sabem que revistas de sala de espera de consultórios médicos são velhas e ultrapassadas, mas ninguém nunca parou para prestar atenção à primeira, novíssima, paixão avassaladora de um menino de 6 anos. Assim, a revista foi delicada mas firmemente retirada das minhas mãos e recolocada na mesinha de onde tinha saído. Minha mãe nem se deu ao trabalho de fechar a capa de novo e deixou o suave vestidinho de cetim e os cabelos cacheados e dourados da minha princesa encantada escancarados para os olhares insensíveis daquelas velhas horrorosas de sapatos apertados nos pés de banhas transbordantes, que só veriam duas crianças sujas e esfarrapadas.

Aos 6 anos aprendi o que é ter uma paixão perdida. Isso deve ter me ajudado, mais tarde, a absorver tantas desilusões no coração. Talvez tenha me tornado mais duro, talvez tenha me ensinado a compreender melhor os segredos das paixões, não sei. Minha primeira paixão durou meia hora, mas meu coração sofreu por uma semana. Será mesmo que foi só uma semana? Como já disse, eu tinha 6 anos e faz muito, muito tempo. E por que será que até hoje eu nunca me esqueci? E eu sequer vi o rosto dela.

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